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Otelo, de Shakespeare: o inimigo dentro de nós — 3ª parte

Resenha do livro “Pergunte a Shakespeare: as respostas do dramaturgo mais famoso do mundo para os grandes desafios da vida cotidiana” (Leya, 296 páginas, tradução de Silvana Cobucci), de Cesare Catà

Medos, sejam visíveis ou invisíveis, são sentimentos intrínsecos à condição humana. O autor entende, com razão, que os medos externos possuem razões compreensíveis e identificáveis. Esses medos visíveis são curáveis, pois se conhece o inimigo contra o qual se está lutando. No entanto os medos invisíveis povoam nossas mentes com fantasmas, angústias e ansiedades, tornando-se perigosos devido à sua natureza intangível.

Para ilustrar essa questão, consideremos o caso hipotético de Ana Lúcia, que está com quase vinte quilos acima do peso e aumentou consideravelmente o consumo de álcool. Parece que ela está em um processo de autodestruição. O mais provável é que essa pessoa esteja externalizando uma luta interna contra algum fantasma que não consegue superar. E isso pode ser resultado de vários fatores: um problema conjugal? Um pai que abandonou o lar? A rebeldia de uma filha? Essas questões precisam ser investigadas, pois as respostas estão armazenadas nos recônditos da mente humana, cabendo ao terapeuta investigar e entender a dor que aflige essa alma.

A relevância de Otelo e Machado de Assis

O professor Cesare Catà, expert em Shakespeare, afirma que “a pessoa ansiosa passa a maior parte do tempo lutando contra fantasmas, queimando energia com algo que, em última análise, não existe”. A história de Otelo, repleta de fantasmas e angústias, revela como o ser humano, muitas vezes, é derrotado por si próprio. Esse conceito também é abordado no conto “O Espelho”, de Machado de Assis. Nele, o autor apresenta duas almas que compõem o todo do ser humano: a alma exterior, visível ao mundo; e a alma interior, que envolve pensamentos e sentimentos profundos e íntimos.

Otelo, com sua alma atribulada e repleta de medos e ansiedades, é um exemplo de como os fantasmas interiores podem dominar um indivíduo. Os fantasmas shakespearianos foram, de fato, vencedores em sua vida.

O Amor e a Tragédia em Otelo

Se fosse possível finalizar a peça no primeiro ato, teríamos uma bela história de amor. O amor entre Otelo e Desdêmona é intensamente mostrado quando são chamados para depor no tribunal. Otelo declara: “Ela se apaixonou por mim devido aos perigos que eu enfrentei, e eu a amei porque ela teve compaixão. Foi essa toda a minha feitiçaria”. Desdêmona corrobora, dizendo: “Eu vi a face de Otelo em sua alma e consagrei meu coração e meu destino à sua honra e virtude”. Contudo a mente maligna de Iago destruiu a vida desses seres humanos, mexendo com os fantasmas internos de Otelo.

A Vingança de Iago

A vingança de Iago é resultado de um plano bem-elaborado, envolvendo manipulação, mentiras e a exploração das fraquezas da alma interior de Otelo. Na continuidade estão as etapas do plano que culminaram na tragédia:

1

Motivação de Iago: sentiu-se injustiçado pelo fato de Otelo ter promovido Cássio em vez dele. Além disso, Iago desconfiava que Otelo tinha um caso com sua esposa, Emília.

2

Manipulação de Rodrigo: sabendo que Rodrigo era apaixonado por Desdêmona, Iago fez Rodrigo acreditar que, caso o ajudasse, teria chances com a esposa de Otelo.

3

Manipulação de Cássio: Iago armou uma briga envolvendo Cássio e convenceu Otelo a demiti-lo. Em seguida, aconselhou Cássio a procurar Desdêmona para reverter a demissão.

4

Desconfiança de Otelo: Iago semeou desconfiança ao colocar o lenço de Desdêmona em um lugar suspeito. Otelo, tomado pelo ciúme, mata Desdêmona.

5

Revelação da Verdade: Emília, esposa de Iago, expôs as mentiras de seu marido. Otelo, percebendo seu erro, comete suicídio.

As obras de Shakespeare mostram que o mal sempre tem um preço a pagar. Iago foi levado à justiça para enfrentar as consequências de seus crimes. Compreender Shakespeare sem complicações é o que o autor e este escriba propõem. A história de Otelo alerta sobre os perigos dos fantasmas interiores e a importância de enfrentá-los para evitar que destruam nossas vidas.

Como Otelo pode ajudar no seu dia a dia

O sábio Cesare Catà, na contracapa de seu excelente livro, exprime-se sobre a importância de ler Shakespeare. A seu ver, “seja qual for o seu caso, você, como bom ser humano, é um personagem shakespeariano”. Comungo nas ideias desse sábio, pois a vida é um palco que esse grande dramaturgo inglês soube decifrar.

No meu caso, Otelo provocou uma mudança radical no meu relacionamento social. Passei a valorizar as pessoas não pelas palavras, mas pelo modo como agem. Confiar, desconfiando. Nesse sentido, tornei-me mais seletivo com as amizades. Aprendi a lidar com as frustações e a valorizar atitudes. Otelo foi fundamental para meu autoconhecimento. OS ensinamentos dessa obra-prima foram fundamentais ao meu amadurecimento. Aprendi lidar com as turbulências da vida sem jamais me desesperar. Confesso que sou feliz! Essa foi minha experiência com essa grande peça.

Certamente, a obra poderá ter um impacto diferente em você, porque cada um de nós tem. a alma interior  preconizada por Machado de Assis  no conto “O Espelho”. Seja qual for o impacto, tenho certeza de que, após a leitura de Otelo, você terá uma vida mais leve e plena.

Pergunte a Shakespeare não é autoajuda

Li vários comentários, a maioria elogiosos, a respeito da obra de autoria do doutor Cesare Catà. Entretanto creio ser oportuno esclarecer o comentário de um crítico afirmando que “Pergunte a Shakespeare” é uma obra que merece ser lida, embora se trate de “autoajuda refinada”. Discordo plenamente dessa afirmação. Se ele leu o livro, parece que não entendeu a proposta do autor: tornar palatável para um público mais amplo o conhecimento das peças do maior escritor do mundo ocidental.

Autoajuda é como receita de bolo: “Faça isso e será feliz”. Não passa pelas profundidades do ser e tudo o que isso representa, como enfrentar os segredos bem-escondidos na alma de cada um de nós. Dito isso, comentarei minha experiência com julgamentos precipitados quanto ao valor intelectual de um livro.

Sempre que vou a Paris, tenho o hábito de percorrer as livrarias perto da estação Saint-Michel, no bairro dos intelectuais franceses, o Quartier Latin. Geralmente, compro uns oito livros e começo a folheá-los, procurando estabelecer uma fila de leitura que acabo furando se a novidade for boa.

Na última vez que visitei a cidade luz, fui à livraria Gibert Jeune e saí de lá com seis livros embrulhados numa sacola. Da livraria, entrei num bistrô, pedi um bom vinho e uma água mineral e comecei a folhear os livros. Quando comecei a folhear o quinto livro, algo me surpreendeu: era a obra “Vida Feliz”, de um dos maiores intelectuais da França. Falo do ex-ministro da educação daquele país, o respeitadíssimo Luc Ferry. Creio que comprei o livro pelo prestígio do autor.

Ao constatar isso, comecei a examinar o livro com mais detalhes e fui percebendo a grandeza da obra, em que Luc Ferry discute conceitos verdadeiramente complexos, destinados a atender a um público que vai além do rigor acadêmico. Para isso, o erudito autor, numa linguagem comunicativa, atinge um público mais amplo, capaz de introjetar conceitos filosóficos que permitem a quem lê ter instrumentos analíticos que levem à autotransformação do ser humano em busca de uma vida feliz.

O livro do doutor Cesare Catà tem exatamente esse propósito. Quem escreveu esse livro, conhece profundamente a literatura de William Shakespeare. “Pergunte a Shakespeare” passa longe da receita de bolo dos livros de autoajuda. É um livro sério, com o propósito sério de levar a obra do maior escritor do mundo ocidental para um público mais amplo, carente de conhecimentos, ajudando a entender e combater seus fantasmas, em busca dessa tal felicidade.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos seguintes temas: energia, política, desenvolvimento regional e economia. É colaborador do Jornal Opção.

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