Otelo, de Shakespeare: o inimigo dentro de nós — 3ª parte
Medos, sejam visíveis ou invisíveis, são sentimentos intrínsecos à condição humana. O autor entende, com razão, que os medos externos possuem razões compreensíveis e identificáveis. Esses medos visíveis são curáveis, pois se conhece o inimigo contra o qual se está lutando. No entanto os medos invisíveis povoam nossas mentes com fantasmas, angústias e ansiedades, tornando-se perigosos devido à sua natureza intangível.
Para ilustrar essa questão, consideremos o caso hipotético de Ana Lúcia, que está com quase vinte quilos acima do peso e aumentou consideravelmente o consumo de álcool. Parece que ela está em um processo de autodestruição. O mais provável é que essa pessoa esteja externalizando uma luta interna contra algum fantasma que não consegue superar. E isso pode ser resultado de vários fatores: um problema conjugal? Um pai que abandonou o lar? A rebeldia de uma filha? Essas questões precisam ser investigadas, pois as respostas estão armazenadas nos recônditos da mente humana, cabendo ao terapeuta investigar e entender a dor que aflige essa alma.
A relevância de Otelo e Machado de Assis
O professor Cesare Catà, expert em Shakespeare, afirma que “a pessoa ansiosa passa a maior parte do tempo lutando contra fantasmas, queimando energia com algo que, em última análise, não existe”. A história de Otelo, repleta de fantasmas e angústias, revela como o ser humano, muitas vezes, é derrotado por si próprio. Esse conceito também é abordado no conto “O Espelho”, de Machado de Assis. Nele, o autor apresenta duas almas que compõem o todo do ser humano: a alma exterior, visível ao mundo; e a alma interior, que envolve pensamentos e sentimentos profundos e íntimos.
Otelo, com sua alma atribulada e repleta de medos e ansiedades, é um exemplo de como os fantasmas interiores podem dominar um indivíduo. Os fantasmas shakespearianos foram, de fato, vencedores em sua vida.
O Amor e a Tragédia em Otelo
Se fosse possível finalizar a peça no primeiro ato, teríamos uma bela história de amor. O amor entre Otelo e Desdêmona é intensamente mostrado quando são chamados para depor no tribunal. Otelo declara: “Ela se apaixonou por mim devido aos perigos que eu enfrentei, e eu a amei porque ela teve compaixão. Foi essa toda a minha feitiçaria”. Desdêmona corrobora, dizendo: “Eu vi a face de Otelo em sua alma e consagrei meu coração e meu destino à sua honra e virtude”. Contudo a mente maligna de Iago destruiu a vida desses seres humanos, mexendo com os fantasmas internos de Otelo.
A Vingança de Iago
A vingança de Iago é resultado de um plano bem-elaborado, envolvendo manipulação, mentiras e a exploração das fraquezas da alma interior de Otelo. Na continuidade estão as etapas do plano que culminaram na tragédia:
1
Motivação de Iago: sentiu-se injustiçado pelo fato de Otelo ter promovido Cássio em vez dele. Além disso, Iago desconfiava que Otelo tinha um caso com sua esposa, Emília.
2
Manipulação de Rodrigo: sabendo que Rodrigo era apaixonado por Desdêmona, Iago fez Rodrigo acreditar que, caso o ajudasse, teria chances com a esposa de Otelo.
3
Manipulação de Cássio: Iago armou uma briga envolvendo Cássio e convenceu Otelo a demiti-lo. Em seguida, aconselhou Cássio a procurar Desdêmona para reverter a demissão.
4
Desconfiança de Otelo: Iago semeou desconfiança ao colocar o lenço de Desdêmona em um lugar suspeito. Otelo, tomado pelo ciúme, mata Desdêmona.
5
Revelação da Verdade: Emília, esposa de Iago, expôs as mentiras de seu marido. Otelo, percebendo seu erro, comete suicídio.
As obras de Shakespeare mostram que o mal sempre tem um preço a pagar. Iago foi levado à justiça para enfrentar as consequências de seus crimes. Compreender Shakespeare sem complicações é o que o autor e este escriba propõem. A história de Otelo alerta sobre os perigos dos fantasmas interiores e a importância de enfrentá-los para evitar que destruam nossas vidas.
Como Otelo pode ajudar no seu dia a dia
O sábio Cesare Catà, na contracapa de seu excelente livro, exprime-se sobre a importância de ler Shakespeare. A seu ver, “seja qual for o seu caso, você, como bom ser humano, é um personagem shakespeariano”. Comungo nas ideias desse sábio, pois a vida é um palco que esse grande dramaturgo inglês soube decifrar.
No meu caso, Otelo provocou uma mudança radical no meu relacionamento social. Passei a valorizar as pessoas não pelas palavras, mas pelo modo como agem. Confiar, desconfiando. Nesse sentido, tornei-me mais seletivo com as amizades. Aprendi a lidar com as frustações e a valorizar atitudes. Otelo foi fundamental para meu autoconhecimento. OS ensinamentos dessa obra-prima foram fundamentais ao meu amadurecimento. Aprendi lidar com as turbulências da vida sem jamais me desesperar. Confesso que sou feliz! Essa foi minha experiência com essa grande peça.
Certamente, a obra poderá ter um impacto diferente em você, porque cada um de nós tem. a alma interior preconizada por Machado de Assis no conto “O Espelho”. Seja qual for o impacto, tenho certeza de que, após a leitura de Otelo, você terá uma vida mais leve e plena.
Pergunte a Shakespeare não é autoajuda
Li vários comentários, a maioria elogiosos, a respeito da obra de autoria do doutor Cesare Catà. Entretanto creio ser oportuno esclarecer o comentário de um crítico afirmando que “Pergunte a Shakespeare” é uma obra que merece ser lida, embora se trate de “autoajuda refinada”. Discordo plenamente dessa afirmação. Se ele leu o livro, parece que não entendeu a proposta do autor: tornar palatável para um público mais amplo o conhecimento das peças do maior escritor do mundo ocidental.
Autoajuda é como receita de bolo: “Faça isso e será feliz”. Não passa pelas profundidades do ser e tudo o que isso representa, como enfrentar os segredos bem-escondidos na alma de cada um de nós. Dito isso, comentarei minha experiência com julgamentos precipitados quanto ao valor intelectual de um livro.
Sempre que vou a Paris, tenho o hábito de percorrer as livrarias perto da estação Saint-Michel, no bairro dos intelectuais franceses, o Quartier Latin. Geralmente, compro uns oito livros e começo a folheá-los, procurando estabelecer uma fila de leitura que acabo furando se a novidade for boa.
Na última vez que visitei a cidade luz, fui à livraria Gibert Jeune e saí de lá com seis livros embrulhados numa sacola. Da livraria, entrei num bistrô, pedi um bom vinho e uma água mineral e comecei a folhear os livros. Quando comecei a folhear o quinto livro, algo me surpreendeu: era a obra “Vida Feliz”, de um dos maiores intelectuais da França. Falo do ex-ministro da educação daquele país, o respeitadíssimo Luc Ferry. Creio que comprei o livro pelo prestígio do autor.
Ao constatar isso, comecei a examinar o livro com mais detalhes e fui percebendo a grandeza da obra, em que Luc Ferry discute conceitos verdadeiramente complexos, destinados a atender a um público que vai além do rigor acadêmico. Para isso, o erudito autor, numa linguagem comunicativa, atinge um público mais amplo, capaz de introjetar conceitos filosóficos que permitem a quem lê ter instrumentos analíticos que levem à autotransformação do ser humano em busca de uma vida feliz.
O livro do doutor Cesare Catà tem exatamente esse propósito. Quem escreveu esse livro, conhece profundamente a literatura de William Shakespeare. “Pergunte a Shakespeare” passa longe da receita de bolo dos livros de autoajuda. É um livro sério, com o propósito sério de levar a obra do maior escritor do mundo ocidental para um público mais amplo, carente de conhecimentos, ajudando a entender e combater seus fantasmas, em busca dessa tal felicidade.
Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos seguintes temas: energia, política, desenvolvimento regional e economia. É colaborador do Jornal Opção.
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