Os ossos não dizem nada sobre os mortos
O tutano da vida tem de ser sugado antes do ato final dos ossos. Afinal, os ossos não dizem nada sobre os mortos a que pertenceram. Esta frase me veio quando eu estava num cemitério em que ocorreria o sepultamento do pai de um amigo. Eu caminhava entre os túmulos observando fotos, nomes, datas de nascimento e morte dos defuntos (coisa que faço sempre para me manter consciente da minha insignificância dentro do “pálido ponto azul”), quando então presenciei um coveiro retirando os ossos de uma pessoa da gaveta de um jazigo e os colocando num saco plástico preto. Eu quis sair de perto da cena, por achá-la bem assustadora, e continuar caminhando pelas ruas do cemitério, as quais só servem para levar os vivos à casa dos seus mortos, mas resolvi ficar. E não tirei os olhos da ação. O coveiro estava com luvas longas e máscara e realizava a sua atividade, e isso no maior sossego, como se estivesse ensacando um produto qualquer. Uma penca de banana, um punhado de batatas. Ele me contou que havia um novo morto a ser enterrado no local e que a ossada sendo retirada era a mais antiga nas seis gavetas.
No momento em que recolheu o crânio, de repente, não mais que de repente, uma cena shakespeariana do personagem Hamlet me veio à mente: o instante em que ele segura um crânio e o olha demoradamente após o coveiro então lhe dizer que o crânio pertencera a Yoric, o bobo do rei. Hamlet então se lembrou que, quando menino, fora carregado nas costas muitas vezes pelo bufão da corte, cuja função única no castelo consistia em entreter o rei e a rainha (os pais de Hamlet). Eu, no entanto, não fiquei sabendo a quem pertencia a ossada ensacada, nem se era de homem ou de mulher. Nem tinha por que saber. Afinal, voltando aos ossos, eles não dizem nada sobre os mortos a que pertenceram. Os ossos, na verdade, só dizem que são o retorno ao pó.
No sapiencial e niilista livro “Eclesiastes”, consta que uma criança que nasce morta tem mais sorte que um homem que teve cem filhos e viveu muitos anos sem desfrutar as coisas boas da vida. São muitas as coisas boas da vida. E elas não vêm até nós dizendo “ei, estamos aqui, usufrua de nós”. Faz-se necessário cair na estrada, ou seja, correr atrás delas. Não confunda, altaneiro leitor, esse correr atrás com passar por cima das pessoas inescrupulosamente como muitos fazem. Nesse sentido de busca do tutano da vida, o poeta, naturalista e filósofo americano Henry David Thoreau, temeroso em descobrir à hora da morte que não tinha vivido, relata: “Fui para o bosque porque queria viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os fatos essenciais da vida…”
Todos nós temos uma página em branco a nosso dispor para que possamos dizer quem somos. O que somos pode, pois, ser dito em palavras ou gestos. Thoreau, cujos ossos dormem num cemitério de Concord, Massachussets, aproveitou sua página em branco e escreveu muitas coisas interessantes sobre sua vida, inclusive o sublime livro “Walden ou a vida nos bosques”. Thoreau me encantou tanto com essa obra que fui visitar seu túmulo em 2012, conheci o lago Walden onde ele viveu sozinho por dois anos. Há uma réplica de sua cabana por lá, na frente da qual tem uma escultura dele em bronze. Há uma frase de “Walden” que sempre anda comigo para conter o visgo perigoso da vaidade, que é o pecado predileto do diabo: “Estou convencido, por fé e pela experiência, que se sustentar nesta terra não é sofrimento, mas sim um passatempo se vivermos com simplicidade e sabedoria.” A simplicidade inclusive está presente até em sua sepultura, que tem apenas uma pequena pedra como lápide e nela escrito seu prenome.
Movido pela liberdade poética, sobretudo em se tratando de uma crônica, resolvi me imiscuir numa das frases famosas de “O Pequeno Príncipe” para dizer: É o tempo que a pessoa dedicou a ela o que a faz tão importante. Diante disso, tenho procurado não largar da minha mãos na travessia existencial. Quero-me sempre comigo. Creio que Exupéry, escritor francês, não vai se revirar em seu túmulo por causa do meu intrometimento em sua frase: “Foi o tempo que dedicaste a tua rosa que a fez tão importante”.
Exupéry, que era piloto de avião, foi outro que não deixou em branco a página da sua vida. Prencheu-a com gestos e sobretudo de excelentes livros. O ponto final de sua vida aconteceu em 31 de julho de 1944 quando seu avião caiu no mar (ou foi derrubado por um avião alemão na Segunda Guerra Mundial). Seu corpo nunca foi encontrado. Seus livros, no entanto, estão por aí à espera de leitores.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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