Das conduções ‘beiçudas’ e jardineiras ‘bicudas’ aos ‘baús cata-cornos’: o universo caótico do transporte coletivo em Goiás
De início, o transporte de animais de carga e custeio (burros, éguas, jumentos, mulas), alcunhados de “beiçudos” e, depois, as primeiras jardineiras em caminhões adaptados, chamados de “bicudas”, por conta da frente estreita do próprio caminhão e, hoje, os ônibus; também alcunhados de “baús cata-cornos”, fazem parte da dialética do transporte coletivo em Goiás, com uma história peculiar, marcada por enfrentamentos e dificuldades.
Assim, percebe-se que o espaço não é estanque. No seu bojo há opressão e, também, resistência; fluxo e refluxo; jogo constante de poder que a história demonstrou no avançar das gerações, já que, ao se ressaltar sobre a cidade, no contexto da dinâmica sócio-espacialconfigura-se como local onde vive parcela crescente da população; lugar de conflitos sociais; um ou vários núcleos localizados em região ou país.
Desde o longínquo ano de 1722, no século XVIII até os dias atuais, pleno século XXI, muita coisa mudou por força do progresso e do desenvolvimento que, lentamente, se instalou em pleno coração geográfico da pátria.
Na terra de Goiás, no espaço compreendido entre os ricos e os pobres foram criados territórios múltiplos de ocupação e mobilidade dentro desse mesmo espaço; daí, as condições de deslocamento das pessoas no cenário, goiano, foram, ao longo do tempo, marcadas por escalas de poder, na criação de territórios distintos.
Nos primórdios da história goiana, as grandes fazendas eram ilhas de isolamento social e econômico. O labor naqueles recantos era constante, que envolvia a família de “mamando a caducando”, até as crianças, no ditado corrente “serviço de menino é pouco, quem não aproveita é louco”, na luta pela sobrevivência, onde tudo era “tirado do chão”: comida, roupas, remédios, agasalhos, transportes, iluminação, misticismo, apego bairrista, telurismo, até as bobagens.
Era a ocupação do território pelo “corpo do homem”, em que tudo dependia “dos braços”, da “força do feijão”, numa simbiose entre homens e animais. Essas “bocas de sertão” eram as mais rudimentares formas de ocupação, na valorização do trabalho braçal pela ausência completa de mecanização; isto em cidades que foram povoadas sem o apogeu efêmero da mineração.
Mas, o ir e vir, em Goiás, nunca foi fácil, devido às longas distâncias, principalmente no antigo Norte goiano, hoje Estado do Tocantins, isolado por um determinismo geográfico, quando os caminhos eram apenas lamaçais ou picadas feitas a facão e machado; quando rios eram obstáculos e serras eram imensas barreiras quase intransponíveis. s riquezas do solo e das plantas, povoando esta vastidas densas matas, para penetraçentro do espaço do curras, ligadas a chique
O deslocamento dentro do território goiano criou, desde o princípio, a concepção de poder, ao hierarquizar e nivelar classes distintas. A posse da terra por meio de títulos, com as grandes sesmarias, notabilizou o rico em detrimento do pobre, no uso dos recursos.
Primeiramente, a mão de obra escravizada, que possibilitou o engajamento de uma elite rural, centrada no comando a qualquer custo. Com a abolição desta, a criação de uma classe barata de “peões, camaradas, meeiros, vaqueiros”, que era explorada em demasia.
Ter “condução” nesse universo do território goiano era símbolo de status. Ter um cavalo, um burro, uma égua, um jegue, uma carroça, um carro de boi, significava ascensão social. Tal era importante o uso desses veículos rudimentares que havia imposto para a sua circulação; tanto de carros de bois, carroças de pneus, carretões de carrear barro de olarias ou arrastar toras de madeira, ou mesmo carroças de rodas de ferro ou de madeira, que aqui em Goiás eram menos comuns.
Pobre, miserável, era aquele que “estava em pé nas pernas”, segundo o ditado do tempo. Nesse sentido insere-se a definição de que território e espaço estão subordinados ao jogo do poder; já que, no escopo de nossa formação social, sempre houve uma aceitação passiva das assimetrias, uma tendência à subserviência e que se percebe até hoje nos terminais de ônibus, em que passageiros são tratados como lixo, porque são pobres.
Ao que parece, sempre houve um desequilíbrio entre direitos e deveres, quando a referência era a massa popular. As exigências para os pobres sempre foram demasiadamente extremas.
Assim, a massa urbana de hoje, definida neste escopo como os usuários do transporte coletivo, são herança daquele povo de pé no chão, que, na Província de Goyaz dos séculos XVIII e XIX, aceitava as condições ínfimas em relação ao acesso à qualidade de vida. Ao mesmo passo, no ontem, como no hoje, o metropolitano criou nova riqueza e nova pobreza, apenas com cenários distintos.
Essas heranças sociais no ir e vir, dentro de um mesmo território, no caso específico goiano, criou oscilações nas classes sociais ao longo da história. Aos pobres, que não tinham seus animais, cabia o uso dos mesmos para o trabalho, como o de seguir boiadas ou tanger varas de porcos pelos caminhos.
A profissão de comissário e tropeiro vigorou por várias décadas em Goiás, ao abrir condições de vida para muitos que não possuíam as mínimas formas de sobreviver num território marcado pela dificuldade e escassez de recursos.
No território rural goiano do passado havia o desequilíbrio social no tocante ao pertencimento e posse de bens, ao direito de circulação, da acessibilidade, do ir e vir com qualidade. Tal fato insuflou o êxodo rural, que em nada modificou a diferenciação de classe dentro desse território, agora o da periferia, distante do centro da cidade.
O pobre do campo, sem direitos básicos, sem um transporte digno, abandonado à própria sorte na largueza do sertão sem fim, continuou favelado na cidade, esmagado, na convivência com uma degradação de valores, que é causa principal da violência que assola os grandes centros. A exclusão é dolorida.
Ao homem do campo, sem recursos e sem meios de transporte, era o próprio trabalho com os animais que garantia a ida e vinda dentro do território.
Prova de que ter uma “condução beiçuda” era símbolo de ascensão, historicamente, estava na aquisição de belos animais e seus ornamentos, arreios especiais, com arranjos personalizados; motivo de orgulho e prova de poder. Muitos gastavam os salários de peão e camarada para ajaezar os animais com ricos ornamentos, para ostentar na cidade, motivo de júbilo, orgulho e poderio. A “Moda da Mula Preta”, de Raul Torres, escrita nos anos de 1930, ressalta bastante esse ideário entre os sertanejos.
Os primeiros viajantes, pesquisadores, cronistas e até mesmos relatos oficiais dos então Presidentes da Província de Goyaz destacavam a precariedade dos caminhos “ermos e gerais” do universo goiano que, de fato, foi entrave para o desenvolvimento e para a qualidade de vida naqueles distantes rincões.
Em pleno século XIX havia grande dificuldade para conserto de estradas perdidas no alto sertão, conforme aparece em diversos escritos de Auguste de Saint-Hilaire, pesquisador que percorreu a Província naquele século.
Os serviços de conserto e abertura de estradas era um grande empecilho nos governos goianos do século XIX. A falta de mão de obra qualificada, aliada a uma despreocupação com o transporte, fazia dessa atividade, uma raridade naqueles tempos.
Segundo a revista Informação Goyana, circulada no Rio de Janeiro de 1917 a 1935, pela argúcia e tenacidade de Henrique Silva, em sua edição de 1919, destacou que em 1722, por meio do alferes português José Peixoto da Silva Braga foi introduzida a primeira tropa de 39 animais, usados para o transporte de pessoas, víveres e instrumentos da bandeira de Bartolomeu Bueno.
Esta é a gênese do primeiro tipo de transporte de pessoas que se denominou em tom de crítica como “condução beiçuda”. Esse tipo de transporte tanto individual, quanto coletivo, esteve arraigado à história goiana até mesmo na denominação de certos lugares como Pouso Alto, Cavalo Queimado, Derruba Sela, Curralinho e vários outros; o que marca, decisivamente, a penetração do uso do animal, até mesmo no linguajar.
Os animais também eram comprados em grande quantidade para a formação de tropas. Famílias da elite possuíam essas tropas e animais de custeio para viagens e eventuais necessidades de serviço, que atuava mesmo como jogo de poder e dominação.
A trajetória da referida Bandeira de Bartolomeu Bueno, constante no mapa de Tosi Colombina de 1751, o primeiro do Estado, identifica a trilha; ao abrir picadas nas localidades que doravante seriam os primeiros arraiais do ciclo do ouro como: Santa Cruz de Goiás, Anhanguera, Bonfim, Meia Ponte, Jaraguá e Cidade de Goiás.
A “condução beiçuda” composta por bois, vacas, cavalos, éguas, mulas, jegues e até cabritos (havia pequenos carros puxados por estes animais) foi o primeiro tipo de transporte, no trabalho hercúleo de tropeiros, carreiros, comissários, cometas, caixeiros viajantes, que cruzavam o sertão em meio à lama e poeira, hoje relembrados em prosa e verso e mesmo em dolentes modas caipiras, carregadas de telurismo e saudade pungente.
O carro de boi, a carroça, o carretão, a sela foram instrumentos que o homem se valeu da força animal para viajar, transportar mercadorias, passear, “festar” (em Trindade e em Muquém) e também “bestar” (andar a toa), sendo a expressão de origem semântica no próprio nome do animal. “Besta e burro” também adentraram no linguajar popular como símbolo de idiotice.
Essa visão e transformação dentro da concepção de território em Goiás definem a oscilação entre o urbano e o rural, em determinados momentos, a fusão desses dois tipos em aspectos outros como a música e a literatura. Esse crescimento foi desordenado, daí não existir uma rede urbana nacional, cada qual seguiu uma trajetória diferenciada. Existe mesmo nas denominações pejorativas de certos artistas nacionais de que Goiânia é “uma fazenda iluminada”.
Também, em cidades do ciclo do ouro foram utilizados o banguê, a liteira e a cadeirinha, no transporte de pessoas abastadas, moças, crianças e idosas, puxadas pela força dos escravizados, pelas íngremes e acidentadas ruas coloniais de Vila Boa, Meia Ponte, Pilar e Santa Cruz, conforme documentos da época e a literatura histórica de Bernardo Élis, Rosarita Fleury, Edla Pacheco Saad e Augusta de Faro Fleury Curado.
No sertão bruto, nas fazendas, o transporte beiçudo era essencial. Havia uma profunda simbiose entre homens e animais, haja vista que as casas ficavam dentro do espaço dos currais, ligadas a chiqueiros e galinheiros. Nas velhas e desbotadas fotografias, aparecem os bois como referência de abastança e progresso, com as casas atoladas nos barros dos currais. Os animais eram como extensão da própria família.
A profissão dos comissários que encarregavam de transportar pessoas em longas distâncias em tropas organizadas, itinerários marcados por pousos, descansos, incluindo cozinheiros e segurança contra possíveis emboscadas foi à gênese do empreendimento de transporte coletivo em quase dos séculos de história goiana, haja vista que foi somente no final dos anos de 1910 que os primeiros automóveis chegaram aos sertões de Goiás. Um dos famosos de Goiás foi Gerson Vasconcelos de Morais, o Nêgo Pinta Roxa (1922-2002).
Outro importante comissário e representante comercial goiano foi Antonio Xavier Guimarães (Totó Guimarães), responsável por trabalhos de transporte de famílias da Cidade de Goiás até Araguari, ponto final da Estrada de Ferro Goyaz. Foi ele um dos maiores “empresários” do “transporte beiçudo”.
Outro fato auspicioso em relação ao transporte beiçudo foi seu uso pela “Força Pública de Goyaz”. Os soldados tinham seus animais de uso para o trabalho urbano e rural, e atingiam grandes rincões pela segurança de um imenso Estado, vigiado pela tropa num trabalho incansável, a cortar estradas e rincões perdidos, muitos mortos em emboscadas pelas matas e estradas solitárias.
Depois, já no início do século XX, as bicicletas passaram a ocupar lugar de destaque. Bicicletas enfeitadas, adornadas, mostradas e tidas com orgulho e prova de “mióra de vida”. Não era qualquer “pé rapado” que possuía uma bicicleta; adquirida com dificuldade e mantida com especial esmero. Tal era o seu uso importante que havia pagamento de imposto para sua circulação.
O uso da bicicleta não esteve ligado apenas ao ir e vir dos matutos e roceiros. Quando surgiu Goiânia como a “Capital brotinho” da “Marcha para o Oeste”, em pleno ápice da Segunda Guerra Mundial e consequente racionamento de combustíveis, o uso da bicicleta se generalizou na nova cidade; sendo reconhecida nacionalmente como a “sport city”, conforme crônicas dos jornais da época.
A bicicleta passou a ser, nesse tempo, uma extensão da própria condição limitada na época do “transporte beiçudo” e de tal forma se propagou que servia mesmo de motivo de registro fotográfico pelo orgulho de sua aquisição.
No que concerne ao uso do transporte, na locomoção de pessoas dentro do território goiano alhures, havia, além das diferenciações sociais excludentes, ainda a questão do gênero. Era mais difícil, no âmbito do “transporte beiçudo” a locomoção da mulher até por questões físicas. Moça direita, honesta, “de família” não abria as pernas sobre cavalos, em posições tidas por obscenas.
Os silhões em que moças usavam, assentadas de lado e com as pernas fechadas, era um adereço muito caro, somente para as mais ricas. Havia até tamboretes próprios para a subida e descida das damas, chicotes com cabos encastoados de prata. As caçambas de colocarem os pés eram de bronze e imitavam sapatos. Mulher pobre andava mesmo era a pé, se possível ainda a carregar filhos nas cadeiras, conforme mostram vários poemas de Cora Coralina e Sônia Maria Ferreira.
Quando do advento da bicicleta, pelas mesmas questões morais, pela limitação dos vestidos e saias, era quase impossível uma moça pedalar porque “mostrava os fundos”. Quando algumas audaciosas conseguiam furar o cerco da vigilância, era motivo de censura. Surgiram bicicletas em que os canos eram mais baixos, faziam uma curvas, que não precisava levantar as saias ou vestidos, chamadas certo tempo de “monaretas”.
Na realidade, naquele Goyaz provinciano, mulher honesta era aquela que ficava quieta e presa no recinto do lar. Viagem e passeio não era coisa para o “sexo frágil”. “Mulher passeadeira, saideira só poderia dar em bandalheira”, era o ditado corrente.
Nos documentos relativos às bicicletas, aparecem os impostos que incidiam sobre o seu uso. Qualquer cidadão que utilizava este meio de transporte era obrigado a pagar imposto.
Surge, a partir do final da década de 1920, o “cavalo de rodas” que penetrou o sertão de Goiás em 15 de agosto de 1918, guiado por José Sabino de Oliveira e tendo por passageiros Ronan Rodrigues Borges e Sidney Pereira de Almeida, saindo de Santa Rita do Paranaíba rumo a Jataí. Era um Ford Double Phaeton, modelo T.1916.
O segundo ciclo histórico dos transportes em Goiás também sofreu profundas transformações. O principal problema nos tempos pioneiros era a falta de estradas e de apoio do governo para a construção das mesmas. O pioneirismo de Ronan Rodrigues Borges fez surgir, apesar de todas as adversidades, a “Auto viação Sul-Goyana”, a primeira do gênero em Goiás, que ligou Santa Rita do Paranaíba a Jataí.
Em 1918 organizou-se outra companhia rodoviária, a Auto Viação Corumbaibense, tendo como acionistas os grandes criadores e agricultores do município de Corumbaíba. Foi concedida à companhia a construção e exploração da rodovia que ligaria aquele município à estação ferroviária de Goiandira, passando por Nova Aurora; o que possibilitaria, assim, o escoamento da produção da região local.
Historicamente, as primeiras Jardineiras chegaram ao Brasil em 1919, com lugar para oito pessoas. Eram ônibus montados sobre caminhões, onde a única parte original externa mantida no veículo era a frente, com o capô do motor, faróis e pára-choque. A parte traseira era uma enorme caixa de madeira com vidros e bancos A partir de 1926 foram importadas as jardineiras chamadas de Yellow Coach.
Mas, o primeiro ônibus brasileiro só foi fabricado em 1941 pelos irmãos Grassi, com capacidade para 45 pessoas. Nos anos 1950, a Mercedes Benz fabricou os primeiros chassis nacionais. A Caio – Cia., Americana Industrial de Ônibus, produziu as primeiras carrocerias para a esses chassis.
O caminhão F-600, lançado pela Ford no Brasil em 1957, também foi muito utilizado para a transformação em ônibus, já que era o primeiro caminhão brasileiro movido à gasolina. Na mesma década surgiram os “bicudinhos”, que circularam por cerca de vinte anos.
Era então o novo tempo que se abria nos horizontes limitados de então com as jardineiras alcunhadas de “bicudas”, pois eram veículos híbridos entre caminhão e ônibus, com parte de carroceria de ônibus e a frente de caminhão, daí mesmo ser “bicuda”. Foram esses arremedos de ônibus os primeiros a transportar pessoas em Goiás, que venciam todas as dificuldades, com lamaçais, pontes velhas e estradas carreiras.
Desde o pioneirismo da “Auto Viação Sul Goyana” em 1918, outros empreendimentos foram sendo inseridos como meio de transportar pessoas, que aboliu ou diminuiu o “transporte beiçudo” para um plano mais inferior, muito embora uma grande variedade ainda de pessoas achavam que o cavalo todo enfatiotado, com bela montaria, era motivo de status.
As bicudas venciam a custo as distâncias e os lamaçais, e rompiam barreiras e transportavam, apesar das limitações, um número maior de pessoas, a exemplo das jardineiras de Odilon Santos, no pioneirismo entre Minas e Goiás.
Nos anos de 1920, o transporte de pessoas em Goiás criou vulto e insuflou novos investimentos, tanto que, segundo a Revista Informação Goyana, veiculada em 1921, noticia a visita do então Ministro da Viação, Dr. Pires do Rio, a nosso Estado. Tão válidos foram os laços que este foi homenageado com o nome de cidade na região da Estrada de Ferro.
Muitos empresários pioneiros devem ser lembrados nesses primeiros investimentos ainda nos anos de 1920 como: Edmundo de Moraes, José Pio, Lopo de Souza Ramos, Benvinático Salgado, Dantão Curado, Tito Teixeira, José Diniz, Quinca Joaquim, José Cornélio Brom e Pílade Baiocchi. Naqueles primeiros anos, o empenho, destemor e persistência desses cidadãos com seus funcionários (chauffeur) foram decisivos para a melhoria da qualidade de vida das pessoas naqueles distantes anos.
O terceiro ciclo da história do transporte coletivo goiano iniciou-se nos primórdios dos anos de 1930, quando, após a Revolução que apeou a oligarquia dos Caiado do poder pela pertinência do então Interventor Federal Pedro Ludovico Teixeira, foi reacendida a secular ideia de transferência da capital para local de melhor acesso, já que a Cidade de Goiás ficava perdida em meio às cordilheiras da Serra Dourada.
O que era para ser uma cidade mais humanizada abriu campo, mais tarde, com a especulação imobiliária, a uma organização espacial que resultou num território urbano em que as pobres terras periféricas cada vez mais distantes do centro, deram margem para o pauperismo populacional.
Não só uma distância geográfica que exclui, mas, também, a falta de acessibilidade social e cultural. Goiânia ainda é exemplo disso; bonita, florida, agradável, mas com uma periferia massacrada em “cata cornos” (como eles mesmos definem); cada vez mais cheios de gente pobre e excluída; amassada nas latas de sardinha, como se denominam os ônibus.
Ideia da mudança da capital foi levada adiante, apesar de todas as adversidades e fez florescer Goiânia em datas emblemáticas: 24 de outubro de 1933 (lançamento da Pedra Fundamental), 23 de Marco de 1937 (transferência definitiva da capital) e 05 de julho de 1942 (Batismo Cultural de Goiânia).
Surgia, assim, em pleno coração geográfico da pátria o milagre da Marcha para o Oeste, a “Capital brotinho” que se levantava no chão vermelho das campinas. O que era apenas um bloco igualitário, abriu, mais tarde, as primeiras lacunas de bairros pobres, a começar pelo dos operários, ao lado do Córrego Botafogo. Já era a luta do centro versus periferia. Desde a sua fundação, Goiânia tem sido o palco de um crescimento demográfico e de uma expansão urbana vertiginosa.
Em 1950, a cidade já superava as expectativas demográficas da época da sua construção e ultrapassava a cifra dos 50.000 habitantes. Já em 1980, a população da cidade já era estimada em cerca de 700.000 pessoas. Desde então, no geral, tanto o crescimento demográfico quanto a expansão da área urbana do município de Goiânia se têm feito num ritmo mais lento que outrora.
O resultado de tais processos vem sendo a periferização do espaço urbano de Goiânia – fenômeno para o qual também os altíssimos índices de crescimento populacional de alguns municípios da região metropolitana têm contribuído e tais fatos tornam o transporte coletivo da capital um dos mais sérios problemas enfrentados pelo povo e pelo governo.
Uma nova cidade que crescia vertiginosamente à sombra da Campininha urgia regularizar seu transporte coletivo. A “Tareca” cumpriu o seu papel pioneiro ao transportar pessoas de Campinas para Goiânia e vice versa; já que este era o único ponto de aglomeração, com dois pequenos núcleos urbanos, sem bairros adjacentes.
A “Tareca” na verdade era um verdadeiro Frankestein: um caminhãozinho adaptado, transformado numa jardineira com alguns bancos, com apenas uma porta de entrada e saída de passageiros, com uma lotação restrita a dez pessoas, sem segurança e conforto, aberta nas laterais.
Comia-se poeira, na chuva um banho extra e quase todo dia ela quebrava na subida do Lago das Rosas, com destino à nova cidade. Sua demora era absurda, não havia ponto fixo, eram carregadas galinhas e até porcos, pois ainda havia fazendas entre Campinas e Goiânia.
O grande ciclo migratório do cenário da Goiânia inicial trouxe consequências e problemas para o fluxo de pessoas. Os “carros de praça”, também chamados de “ispicialis” pelos matutos, eram caros, como os táxis de hoje; sem esquecer a luta, agora, na questão de “Uber”.
Também os velhos paus de arara transportaram pessoas nos primeiros tempos de uso de automóveis em Goiás, principalmente nas cidades do interior. A população mais pobre não dispunha de recursos para pagamento de transporte mais digno e muitos, então, se empoleiravam em paus de arara e viajavam sem segurança e conforto, muitas vezes a pagar caro pelo serviço prestado.
Depois da “Tareca”, surgiram as primeiras jardineiras em Goiânia pelo pioneirismo dos empresários Odilon Santos, João Pedatela, Pílade Baiocchi e Francisco Cândido de Lima; que transportavam trabalhadores das primeiras grandes obras da nova capital de Goiás. Jardineira bicuda, assim como o transporte “beiçudo” e as bicicletas eram motivo de orgulho, para poses em fotografias, que, hoje, são valiosas fontes históricas.
Com a expansão desordenada da nova capital, já no final da década de 1940, a década seguinte dos “anos dourados” do bolero, seria de dificuldades para a gente pobre que vinha tentar a sorte na “tal da Goiânia”. Muitos bairros adjacentes ou distantes já faziam parte do cenário de uma cidade que não parava nunca de crescer.
Urgia os primeiros “bodinhos”, pequenos ônibus que circularam pela “Viação Araguarina” de Odilon Santos; que fazia uma homenagem à Araguari, cidade mineira.
Dos anos de 1950 até o presente, o que se verifica é o caos. Agregaram-se outras empresas como Viação Goiânia, Viação Paraúna, Viação HP, Viação Reunidas, Viação Rápido Araguaia, Viação Guarany, Metrobus, Leste; além da criação da Transurb.
As rotas dos ônibus nem sempre atendem à lógica, mas ao interesse das empresas e há sempre, cotidianamente problemas como custo, tempo, superlotação, filas, empurra-empurra, lama, poeira, desrespeito ao cliente, veículos imundos, baldeações excessivas em terminais sem conforto, mau atendimento e descaso.
Na verdade não há opções no transporte coletivo de Goiânia. Poucas são as concorrências e ocorre centralização nas concessões. Soa falso o discurso sobre a necessidade de uso do coletivo. É um transporte caro, excludente e mal resolvido.
Ao que parece, há uma tentativa de imbecilidade coletiva. Tudo para o povo deve ser lixo. Nada para o povo deve ter qualidade. Usuários do transporte coletivo não podem ser passivos de um serviço desqualificado. Eficiência também deve ser repensada. Para tudo, desde o passado, deve haver um planejamento para superar problemas sociais.
No caso específico de Goiânia, houve uma cidade pensada e outra vivida. Desde a década de 1960, o trânsito começou a se estrangular e os ônibus foram os grandes culpados por esse problema.
Na década de 1960 houve considerável aumento da frota de ônibus “bodinhos” na capital goiana, mas mesmo assim de qualidade duvidosa. Era o serviço prestado sem a devida visão do coletivo, da massa, da população que, manipulada, era induzida a aceitar qualquer intervenção, mesmo que ruim, numa passividade a lembrar o passado.
Surgiu nesse período a primeira garagem de ônibus e a intervenção da Prefeitura na dinamização dos serviços, que ocorreu na gestão do Prefeito Municipal Dr. Hélio Seixo de Britto (1961-1966), ocasião em que inaugurou diversas linhas para setores distantes.
Até os anos de 1970, o transporte coletivo de Goiânia era feito e administrado sem a tutela do poder público estadual, realizado por empresas familiares e pequenas em que tudo era improviso e sem planejamento prévio.
Foi nas gestões de Manoel dos Reis e Silva na Prefeitura Municipal de Goiânia e Irapuan Costa Junior no governo do Estado que houve o primeiro engajamento de políticas públicas voltadas ao setor do transporte coletivo de Goiânia, ao fundir os dois níveis de administração.
Passa a vigorar, a partir de então, o ideário de desenvolvimento sócio-espacial que só pode ocorrer quando propiciar uma melhoria da qualidade de vida e um aumento da justiça social. Neste cenário de mudanças na década de 1970, começou o sistema de integração com as cidades limítrofes, sendo Trindade a primeira, por meio da Empresa Moreira, ao interligar-se com a antiga rodoviária de Campinas.
Nesse período de planejamento do transporte a Viação Araguarina entrou no sistema e fazia a linha de ônibus entre Goiânia e Campinas, ao utilizar as avenidas Anhanguera e 24 de outubro. Em 1969, houve a primeira licitação de linhas quando a HP Transportes. Em 1970, Goiânia tinha 533 mil habitantes e 55 linhas de ônibus.
Mesmo assim, essas linhas não eram satisfatórias para uma cidade que crescia desordenadamente. Em 10 de novembro de 1975, pela Lei 7975, foi criada a TRANSURB, estatal para gerenciar e operar parte do transporte coletivo da cidade. Com a expansão urbana houve a conurbação dos municípios vizinhos; o que forçou o sistema a mudar, com o crescente aumento da demanda.
Tal fato levou ao “inchaço urbano”, na visão de edema, problema que não é causa. A causa é porque a cidade não é o locus da cultura, da liberdade e da transformação. Passaram a existir territorialidades móveis e flexíveis, negadoras da integração, outras forçadas pelo poder, no caso dos “conjuntos habitacionais” feitos aleatoriamente e rapidamente, no atendimento ao preceito populista; o que criou sujeitos congregados, simétricos, casas de placas de cimento, perdidas na imensidão da periferia, sem as mínimas condições de conforto. Tudo isso passaria a ser frequente na década de 1980.
Nos anos de 1990 houve aceleração, também, de todos esses problemas com o inchaço urbano das cidades do entorno. O transporte alternativo adentrou para o sistema de transporte coletivo de Goiânia desde 1997, com circulação de micro-ônibus, vans e Kombis que circulavam de forma irregular pelas ruas da cidade, no transporte de passageiros. Houve forte disputa entre esse setor paralelo e os empresários. Somente em 24 de agosto de 1999 o mesmo foi regularizado. Depois de uma longa briga política e de interesses econômicos, as vans foram retiradas de circulação.
Criada pela Lei Complementar nº 27 de 30 de dezembro de 1999, a Região Metropolitana de Goiânia – RMG englobou onze municípios, que incluía Goiânia. Foi também criada a Região de Desenvolvimento Integrado de Goiânia, que inclui mais sete municípios do aglomerado urbano da capital.
A RMG tem por objetivos principais “integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum dos municípios” que a integram, objetivos estes, na realidade caótica do cotidiano, bastante questionáveis.
Recentemente, a Prefeitura Municipal de Goiânia adaptou sua frota para atender aos portadores de necessidades especiais, melhoria na tecnologia de ponta, decreto assinado pelo Governador Alcides Rodrigues e Íris Rezende. Criou-se o SIT-RMG. As empresas que venceram a licitação dos serviços foram a Rápido Araguaia. HP, Reunidas e Cooperativa do Transporte Coletivo de Goiânia (Cootego). Nesses ônibus há elevadores para cadeirantes, monitores internos, espaço específico aos portadores de necessidades especiais, bem defronte a porta do meio do veículo.
Assim, da condução beiçuda, ao passar pelas jardineiras bicudas e rabudas e ao chegar aos baús cata-cornos, o transporte coletivo, em Goiás, sempre foi excludente, caro, ineficiente; o que gerou imensa defasagem social aos “sem carro”, portanto alcunhados de pobres e pés-rapados, haja vista que hoje ter um carro (até dois ou três por família) significa status e necessidade básica.
Quem anda de ônibus é alcunhado de Mané, ralé, chulé, fubazento; portanto, indigno de um tratamento humanitário e com qualidade, infelizmente. É a criação, no âmbito do espaço goiano, do território dos “pés de Toddy”, expressões duras e desumanas, que se agravam com a constante violência dentro de ônibus e terminais; abusos de ordem sexual com as mulheres, em casos recorrentes, desrespeito com idosos e crianças.
É nossa sociedade, com suas contradições e desacertos, no eternizar de escravidões, desde os pobres “andarilhos e vadios” que não possuíam animais; os que não podiam pagar uma jardineira, ou os que são massacrados e estão em “terminais” em estado “terminal” de canseira e maus tratos, nesse grande mundo urbano, sujo e desarticulado, que se abre para um incerto futuro de tantas dores e medos, com a paz fugindo aos olhos dos que não podem nem mesmo sonhar!
Bento Fleury (Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado). Graduado em Letras e Linguística pela UFG. Especialista em Literatura Comparada pela UFG. Mestre em Letras e Linguística pela UFG. Mestre em Geografia pela UFG. Doutor em Geografia pela UFG. Professor. Funcionário público e poeta.
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