Municípios chegaram a pagar R$ 27 mil para clínica que torturava pacientes
Mesmo diante de condições degradantes, denúncias graves de violência e indícios de crimes, prefeituras de Mato Grosso do Sul chegaram a pagar até R$ 27,3 mil por paciente para internações em uma clínica de reabilitação que funcionava em Campo Grande. Os valores constam em relatório do MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), divulgado no fim de outubro de 2025, após inspeção realizada em outubro de 2024. O caso envolve a Clínica de Reabilitação Os Filhos de Maria Ltda., onde municípios custearam internações compulsórias e medidas de segurança determinadas pela Justiça, mesmo com o local apresentando características de confinamento, maus-tratos e ausência de cuidados adequados em saúde. De acordo com a análise de prontuários, o município de Nova Andradina destinou R$ 27.300 para manter uma pessoa internada por seis meses, além de R$ 1.250 para a remoção até a clínica - o equivalente a R$ 4.550 mensais. Outro caso citado no relatório aponta que o município de Miranda pagou R$ 21.700 por uma internação compulsória de seis meses, cerca de R$ 3.616 por mês. Mesmo em casos voluntários, os valores cobrados eram considerados altos: havia mensalidades entre R$ 1.677 e R$ 2.400, além de taxas de matrícula, custos de “resgate” e valores extras para cantina. Segundo o relatório, esses pagamentos contrastavam com a realidade encontrada: alojamentos superlotados, falta de higiene, alimentação precária, ausência de equipe técnica suficiente e relatos consistentes de violência física e psicológica. Inspeção - A inspeção ocorreu em 25 de outubro de 2024 e contou com integrantes do MNPCT, além de representantes da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul. Diante da gravidade do que foi encontrado, um relatório específico foi publicado para subsidiar investigações criminais e garantir a proteção das vítimas. A clínica funcionava em uma área isolada, sem acesso a transporte público, e mantinha pessoas privadas de liberdade sem condições legais claras, incluindo internações compulsórias e cumprimento de decisões judiciais. Pelo menos cinco internos estavam no local por ordem judicial. Entre os casos mais graves, foi identificado um adolescente de 17 anos internado junto com adultos, prática proibida por resolução nacional. Durante a inspeção, cerca de 90 pessoas pediram para sair do local, relatando desespero, maus-tratos e desejo de retorno às famílias. A Polícia Civil e diversos órgãos de fiscalização foram acionados. O relatório descreve um padrão de funcionamento marcado por retenção de documentos e celulares, monitoramento de ligações, restrição de visitas e punições internas. Internos relataram a existência de “resgates involuntários”, quando pessoas eram levadas à força para a clínica, sem a presença de profissionais de saúde. Também foram apontados indícios de uso irregular de medicamentos controlados, ausência de acompanhamento terapêutico individualizado e utilização de trabalho não remunerado como parte do chamado “tratamento”. O ambiente foi descrito como asilar e coercitivo, com pessoas permanecendo internadas por longos períodos, sem autonomia para sair ou contestar a permanência. Em fevereiro de 2025, o Poder Judiciário determinou o fechamento definitivo da clínica, estabelecendo prazo de 30 dias para o encerramento das atividades e o encaminhamento dos internos remanescentes, sob pena de multa. Para o MNPCT, a decisão representa um marco ao interromper a atuação de instituições que, segundo o órgão, operavam com tolerância do sistema de justiça, apesar de sucessivas denúncias. Entenda - A inspeção também foi motivada pela morte de um paciente, de 26 anos, no dia 20 de maio de 2024. Os responsáveis pela clínica foram encaminhados à delegacia para prestar depoimentos e alguns internos mantidos em cárcere foram liberados. Pelo menos cinco ex-internos foram encontrados pela rua pedindo ajuda para voltar para casa dois dias após a comunidade ser alvo de inspeção. Ao Campo Grande News, um ex-interno relatou as experiências de tortura, supermedicação e abuso durante os três meses que esteve internado, entre abril e julho de 2024. O MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) abriu um inquérito civil para apurar as denúncias contra a comunidade. Após denúncias de que a comunidade voltou a funcionar com outro nome, a polícia e a Defensoria Pública voltaram ao espaço em julho deste ano. Outro lado - A reportagem fez contato com as prefeituras citadas. A de Miranda ainda não respondeu aos contatos. A prefeitura de Nova Andradina negou ter feito pagamentos à clínica Os Filhos de Maria e afirmou que não possui nem teve contrato ou convênio com a instituição, informação que, segundo o município, é confirmada pelo Portal da Transparência. Em nota, a prefeitura destacou ainda que a atual gestão assumiu em janeiro de 2025, após o período citado no relatório. Informou que, em 2024, a clínica foi vistoriada, mas não foi habilitada em processo licitatório por não atender às exigências técnicas e legais. Segundo o município, eventuais internações de moradores podem ter ocorrido por determinação judicial, com possível bloqueio de recursos públicos decidido pelo Judiciário, sem ingerência da administração municipal na escolha da clínica. Receba as principais notícias do Estado pelo Whats. Clique aqui para acessar o canal do Campo Grande News e siga nossas redes sociais.