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Freud no Futebol

"O futebol brasileiro tem tudo, menos o seu psicanalista. Cuida-se da integridade das canelas, mas ninguém se lembra de preservar a saúde interior, o delicadíssimo equilíbrio emocional do jogador"

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Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues

Lucio Massafferri Salles*, Pragmatismo Político

Freud no Futebol é uma das crônicas com que Nelson Rodrigues consegue atravessar o tempo, sempre atual, fazendo do futebol uma espécie de teatro que envolve todas as paixões humanas. Reproduzida aqui, na íntegra, essa crônica foi publicada em À Sombra das Chuteiras Imortais – crônicas de futebol (seleção e notas: Ruy Castro / Companhia das Letras 1993).

Freud no Futebol

Um amigo meu que foi aos Estados Unidos informa que, lá, todo mundo tem o seu psicanalista. O psicanalista se tornou tão necessário e tão cotidiano como uma namorada.
E o sujeito que, por qualquer razão eventual, deixa de vê-lo, de ouvi-lo, de farejá-lo, fica incapacitado para os amores, os negócios e as bandalheiras. Em suma: — antes de um desses atos gravíssimos, como seja o adultério, o desfalque, o homicídio ou o simples e cordial conto-do-vigário, a mulher e o homem praticam a sua psicanálise. O exemplo dos Estados Unidos leva-me a pensar no Brasil ou, mais exatamente, no futebol brasileiro.
De fato, o futebol brasileiro tem tudo, menos o seu psicanalista.
Cuida-se da integridade das canelas, mas ninguém se lembra de preservar a saúde interior, o delicadíssimo equilíbrio emocional do jogador. E, no entanto, vamos e venhamos: — já é tempo de atribuir-se ao craque uma alma, que talvez seja precária, talvez perecível, mas que é incontestável. A torcida, a imprensa e o rádio dão importância a pequeninos e miseráveis acidentes.
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Por exemplo: — uma reles distensão muscular desencadeia manchetes. Mas nenhum jornal ou locutor jamais se ocuparia de uma dor de cotovelo que viesse acometer um jogador e incapacitá-lo para tirar um vago arremesso lateral. Vejam vocês: há uma briosa e diligente equipe médica, que abrange desde uma coriza ordinaríssima até uma tuberculose bilateral. Só não existe um especialista para resguardar a lancinante fragilidade psíquica dos times.
Em consequência, o jogador brasileiro é sempre um pobre ser em crise. Para nós, o futebol não se traduz em termos técnicos e táticos, mas puramente emocionais. Basta lembrar o que foi o jogo Brasil x Hungria, que perdemos no Mundial da Suíça (Hungria 4 x 2 Brasil, 27/6/1954, em Berna).
Relembre a incrível “Batalha de Berna” em 1954
Eu disse “perdemos” e por quê? Pela superioridade técnica dos adversários? Absolutamente. Creio mesmo que, em técnica, brilho, agilidade mental, somos imbatíveis.
Eis a verdade: — antes do jogo com os húngaros, estávamos derrotados emocionalmente. Repito: — fomos derrotados por uma dessas tremedeiras obtusas, irracionais e gratuitas. Por que esse medo de bicho, esse pânico selvagem, por quê? Ninguém saberia dizê-lo. E não era uma pane individual: — era um afogamento coletivo. Naufragaram, ali, os jogadores, os torcedores, o chefe da delegação, a delegação, o técnico, o massagista. Nessas ocasiões, falta o principal. Estão a postos os jogadores, o técnico e o massagista. Mas quem ganha e perde as partidas é a alma.

“O Fla x Flu começou 40 minutos antes do nada”

Foi a nossa alma que ruiu face à Hungria, foi a nossa alma que ruiu face ao Uruguai.
E aqui pergunto: — que entende de alma um técnico de futebol? Não é um psicólogo, não é um psicanalista, não é nem mesmo um padre.
Por exemplo: — no jogo Brasil x Uruguai entendo que um Freud seria muito mais eficaz na boca do túnel do que um Flávio Costa, um Zezé Moreira, um Martim Francisco (Uruguai 2 x 1 Brasil, 16/7/1950, no Maracanã).
Nos Estados Unidos, não há uma Bovary, uma Karênina que não passe, antes do adultério, no psicanalista.
Pois bem: — teríamos sido campeões do mundo, naquele momento, se o escrete houvesse frequentado, previamente, por uns cinco anos, o seu psicanalista. Sim, amigos: — havia um comissário de polícia, que lia muito X-9, muito Gibi. Para tudo o homem fazia o comentário erudito: — “Freud explicaria isso!”.
Se um cachorro era atropelado, se uma gata gemia mais alto no telhado, se uma galinha pulava a cerca do vizinho, ele dizia: — “Freud explicaria isso!”.
Faço minhas as palavras da autoridade: — só um Freud explicaria a derrota do Brasil frente a Hungria, do Brasil frente ao Uruguai e, em suma, qualquer derrota do homem brasileiro no futebol ou fora dele.
[Manchete Esportiva, 7/4/1956]

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*Lucio Massafferri Salles é jornalista, psicólogo/psicanalista e professor da rede pública de ensino/RJ. Doutor e mestre em filosofia pela UFRJ, especialista em psicanálise pela USU, realizou o seu estágio de Pós-Doutorado em Filosofia Contemporânea na UERJ. É criador do canal FluPress (YouTube).

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