Sono de pedra e flores do morador de rua
Não eram naturais as flores que vi ao lado do homem dormindo sob a marquise na porta de um prédio velho no Centro. Eram rosas vermelhas e alguns galhinhos de plantas diferentes, entre as quais identifiquei apenas samambaia. As flores estavam dentro de uma caixa de papel pequena, e esta numa caixa maior, usada para formar, digamos, uma pequena parede de proteção ao homem. Proteção de quê? Não consegui responder minha pergunta. A exatidão disso não importa dentro do que esta crônica propõe contar. Tomara que as palavras aqui usadas consigam vestir meu pensamento de maneira apropriada. Esse julgamento, altaneiro leitor, é seu.
Sou cismado com gente que gosta de plantas artificiais e que, nesse sentido, argumentam que elas, ao contrário das naturais, não demandam cuidados. Já eu tenho ojeriza de plantas artificiais. São justamente os cuidados que as naturais necessitam é que me fazem bem. E há também o prazer da chegada das flores, poder acompanhar o surgimento do botão até a eclosão da flor em que as pétalas se abrem plenamente. Minha lanterninha-chinesa, por exemplo, está derramando flores; ganhei-a bem pequena. Enquanto fico na contemplação de suas flores, um beija-flor-tesoura tem usufruído do néctar delas.
Seria insensato da minha parte se o homem dormindo na rua entrasse na minha cisma. Vê-lo com plantas naturais é que seria algo inusitado, haja vista que nem lugar para morar tem. Fiquei intrigado com o fato de ele, mesmo morando na rua, pegar as plantas (certamente numa lixeira) e levá-las para “adornar” seu lugarzinho de dormir na calçada suja. Aos seus olhos, as flores certamente serviram de enfeite.
Esse homem está dentro do que se convencionou chamar de “pessoas em situação de rua”. E olho da rua, conforme sabemos, é o destino de quem não tem ocupação, é desempregado. Goiânia está cheio de pessoas assim, principalmente no Centro, há inclusive muitos jovens, algumas meninas até grávidas. Esse caos social só está aumentando. Conforme levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, até julho deste ano, o Brasil tinha 227 mil pessoas em situação de rua e que, em dez anos, houve um aumento meteórico de 1000%.
A pobreza tem ramificações malignas que empurram muitas pessoas para o abismo. Algumas conseguem digerir a pedra e até encontrar um caminho no meio dela. A cruz de cada um tem o seu peso. Uns sucumbem com o peso da sua, fato muitas vezes resultante de sua precária condição socioeconômica: útero podre do qual vem a má distribuição de renda, ausência de falta de investimento social sério em educação e saúde. Os governos nada de dizerem “meus médicos, meus professores”. Só dizem “meu exército, minha polícia”. Esse caos acaba tornando essas pessoas em cacos de gente jogadas pelas ruas, igual ao homem dormindo sob a marquise. Todos, nessa maligna condição social, só conseguem tocar sua vida paupérrima movidos a álcool e droga. Careta não há como encarar.
Aquele homem certamente nunca leu a poesia de Charles Baudelaire, talvez não tenha lido nenhuma de autor algum, mas ele, inconscientemente, está fazendo o que poeta francês versejou: “É preciso estar sempre embriagado”, que pode ser de “vinho, poesia ou virtude”. A escolha do homem tem a ver com a primeira opção, mas de um modo bem drástico. Afinal não é vinho que bebe, pois é caro, mas cachaça de péssima qualidade e junto isso outros ingredientes ilícitos e perigosos à saúde, principalmente pedra de crack. Na verdade, cada um de nós, em nossa fuga do “fardo horrível do tempo”, escolhe algo para se embriagar nesse mundão maluco onde tudo é vaidade. Há, no entanto, aqueles que saem na frente da vida, que dá finitude às coisas, e pegam o barco de Caronte na travessia das águas dos rios Estige e Aqueronte. O poetinha Vinicius de Moraes disse que tais pessoas “matam a morte por medo da vida”.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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